A eleição e os limites da checagem de fatos

Não deu nem para saída e a sequência acima, do twitter de uma mais das mais respeitadas checadoras do país (inclusive por mim), se não é um jogar de toalha, é demonstração de impotência diante dos estreitos limites do “fact checking” que ficaram patentes nesta eleição. Já ficou claro que mesmo com iniciativas como a do Facebook – no qual a checadora acima está inserida – e do Projeto Comprova, a checagem de fatos tem ainda um longo caminho a percorrer para ser útil – se realmente isso for possível.

Além do fato de não ter acesso às fontes das “fake news”, que são múltiplas, espalhadas e mutantes, a checagem de dados enfrenta dois obstáculos, um de ordem filosófica, outro oriundo da evolução. Como próprio nome da atividade diz, o trabalho se concentra em verificar se as informações que circulam por aí, principalmente nas redes sociais, são verazes e, em caso positivo, se o são completamente ou não. Dessa forma, a abordagem dá como certo que os seres humanos tomam decisões com base em fatos, de maneira racional. Como sabe qualquer humano que já tenha lidado com outro humano, não há nada de mais falso.

Vamos fazer umas continhas (pensou que tinha escapado, hein?). Como a gente define civilização? Há um consenso de que foi quando o homem aprendeu a plantar e, gradativamente, se fixou nos lugares mais férteis e criou as cidades (cidades, civitas em latim, civilização… Ahn? Ahn?). Há uma enorme disputa para saber qual a cidade mais antiga, que, no momento, vem sendo ganha por Jericó, localizada em Israel, que teria cerca de 10 mil anos. Guarde isso.

Agora, quando surgiu o conceito de que devemos racionalmente olhar a natureza? Outro ponto de discórdia, mas, aqui no Ocidente, costumamos pôr o ponto inicial nos filósofos pré-socráticos, que passaram a procurar explicações racionais para os fenômenos (Tales de Mileto, considerado o primeiro, morreu há uns 2.600 anos). Eles, no entanto, não pretendiam provar algo recorrendo a provas físicas, mas em termos mentais, filosóficos (daí também serem conhecidos como “filósofos naturais ou da Natureza”). Ou seja, não procuravam explicações físicas para os fenômenos, não os checavam. Quando isso passou a ocorrer? Como não podia deixar de ser, há discordância nesse ponto também. De minha parte, voto em Galileo Galilei, o primeiro sujeito a teorizar sobre um fenômeno e depois ir lá checar na realidade se a sua teoria fazia sentido – e não fazendo, mudava a teoria (Ok, Leo da Vinci veio antes, mas era disperso demais para ser considerado cientista, era mesmo inventor). Galileo começou a publicar em fins do Século XVI e se tornou realmente famoso no início do XVII (foi processado pela Igreja em 1610).

Então temos que a civilização começou há uns 10 mil anos e a ciência como a conhecemos hoje, que tem como um pilar a checagem, há uns 500. Assim, a ideia de que fatos devem guiar nossas decisões existe há 0,5% do tempo da vida civilizada. Note que estou restringindo muito o período, pois só estou falando do surgimento das cidades para cá, esquecendo os outros milhares de anos durante os quais o “homo sapiens” habita a terceira pedra a partir do Sol (segundo a última contagem, 300 mil). Esse é o obstáculo evolutivo.

Obviamente, cinco séculos é muito pouco tempo para se mudar crenças arraigadas por 9.500 anos antes (no mínimo). Quer ver? Semana passada, na mesa de aniversário de uma amiga, presenciei uma mulher muito inteligente explicando, com o uso de definições com nomes bacanas, por que inferno astral não existe, sendo uma jabuticaba brasileira. Era uma astróloga. Astrologia…Uma “ciência” que afirma que uma pessoa nascida entre 23 de outubro e 21 de novembro é do signo de Escorpião e, por isso, tem sua personalidade determinada pela influência de uma constelação cuja estrela principal, Antares, está a 619,7 anos-luz da Terra. Prova empírica, passível de checagem? Nenhuma. Mas centenas de milhares (talvez dezenas de milhões) de pessoas em todo o mundo acreditam.

Esse é o limite da checagem de fatos, mais do que ter ou não acesso aos algoritmos de criptografia do What’s up (único modo de combater de verdade as “fake news” em aplicativo de mensagem instantânea é esse, para saber a fonte do boato, o que implicaria acabar com o produto, que tem como um de seus pontos de atração a suposta inviolabilidade das conversas enviadas por seu intermédio). As pessoas acreditam em algo não porque haja fatos a corroborá-los, mas por que têm experiências e preconceitos que a fazem escolher os fatos nos quais acreditar (e receber a aprovação do grupo, como você deve ter lido no link sobre o obstáculo evolutivo). Há assuntos (e mentes) em que os fatos pesam mais do que outros, claro, mas política certamente não é um deles.

Quero dizer que a checagem de dados deve acabar? Nada disso. Não só deve continuar como ser ampliada, passando a checar também empresas, associações de classe e ONGs, por exemplo, além de políticos. O que não pode, a meu ver, é mostrar-se como panaceia para evitar “fake news” e árbitro da verdade. Essa pretensão não passa pelo mais frágil processo de checagem.

Os deuses das “fakes news”

“Fake news” são os outros

A pouco mais de dois meses das eleições presidenciais que podem definir o futuro do Sudão do Oeste (ou seu sepultamento definitivo), os principais veículos de comunicação tradicionais iniciam um avanço para retomar o “monopólio da fala” por meio um ataque maciço, tipo “blitzkrieg”, contra a incipiente e confusa democratização da comunicação que poderia ser propiciada pela internet. Três movimentos realizados nos últimos meses – o lançamento do projeto Comprova, a divulgação das diretrizes de comportamento dos jornalistas do Grupo Globo nas redes sociais e ampliação do “É ou Não É” do G1 para o “Fato ou Fake”, que engloba todos os veículos do grupo – são, em minha visão, mais convergentes do que divergentes e, muito possivelmente, complementares.

Primeiro, o Comprova. Lançado em 28 de junho, e iniciando sua atividade oficialmente amanhã (6 de agosto), o projeto é financiado pelo Google News Iniciative e o Facebook’s Journalism Project, idealizado pela First Draft – projeto do Shorenstein Center on Media, Politics and Public Policy da John F. Kennedy School of Government da Universidade de Harvard, financiado, entre outros, pela Open Society, de George Soros, que parece estar em todos os projetos que envolvam comunicação -, com apoio da Abraji e do Projor. A ideia anunciada é de combater a “desinformação” que campeia nas redes sociais.

Objetivo dos mais meritórios, mas que, de saída, esbarra em alguns problemas, que já enumerei na página da Coleguinhas no Facebook, além de outros apontados por gente bem mais esperta do que eu (sem contar, claro, a presença de George Soros). Na verdade, o projeto já começa com um erro de checagem – afirma que são 24 veículos que o compõem. Mais ou menos: são 24 veículos, mas que pertencem a 16 grupos e empresas, pois o Grupo Band está representado por quatro (Band TV, Rádio Bandeirantes, Band News e Band News FM), o Grupo Folha por dois (Folha e Uol), e a Abril por dois (Exame e Veja).

Outra questão é a concentração geográfica dessas empresas e grupos. Treze ficam de São Paulo para baixo: nove têm sede em São Paulo (Band, Folha, Estado, Metro, Piauí, Nexo, Abril, UOL e SBT), dois no Rio Grande do Sul (Correio do Povo e GaúchaZH), um é do Paraná (Gazeta do Povo) e um de Santa Catarina (NSC Comunicação), ficando fora do eixo SP-Sul apenas Espírito Santo (Gazeta On Line), Brasília (Poder360), Pernambuco (Jornal do Comércio) e Ceará (O Povo). O problema é que esse desequilíbrio regional tende a criar um viés de cobertura, especialmente porque o projeto encoraja o compartilhamento de sua checagens por veículos que não fazem parte dele.

Esse viés de cobertura já seria ruim, mas há um pior. Considere o mapa abaixo, do resultado final do segundo turno das eleições presidenciais de 2014:

Agora compare os estados em que o candidato do PSDB foi mais votado com os estados em que se encontram os veículos participantes do Projeto Comprova. Pois é: 22 dos 24 têm sua sede nos estados em que os tucanos venceram. E não se diga que não tem nada a ver – no próprio site está dito que a operação foi marcada para começar em 6 de agosto, exatamente por ser a segunda-feira posterior ao prazo final para a indicação das chapas que disputarão a Presidência da República: “O foco inicial do Comprova é a eleição presidencial no Brasil, cuja campanha começa oficialmente em agosto.”

Antes de todos esses senões do Projeto Comprova, um outro chamara minha atenção, como estava no ponto um do post da página da Coleguinhas: a ausência do Grupo Globo. Como o maior grupo de comunicação do país não estava presente num projeto destinado a atacar a disseminação de notícias falsas na internet? A primeira parte da resposta veio logo depois com a inacreditável cartilha que determina como os jornalistas do Grupo Globo devem comportar-se nas mídias sociais, que você pode ler abaixo, junto com as justificativa para a sua edição, assinada por João Roberto Marinho:

A cartilha do Grupo Globo, ao tornar, na prática, seus jornalistas cidadãos de segunda classe por cassar-lhes o direito à livre expressão, fecha ainda mais o cerco à dissidências democráticas na internet brasileira, que começara com o projeto do Facebook envolvendo três agências de checagem brasileiras e que já disse ao que veio.

No entanto, o cerco ainda não estava completo, pois o GG não participa do Projeto Comprova. Agora está. No dia 30 passado, o Grupo dos Marinho lançou a sua versão do Comprova – o “Fato ou Fake”. É praticamente igual ao irmão um tanto mais velho, com um aperfeiçoamento – um robô que espalhará as checagens do Grupo Globo que fazem parte da iniciativa (CBN, Época, Extra, G1, Rede Globo, Globonews, O Globo e Valor). O Comprova não tem essa funcionalidade, mas o também recém-lançado robô Fátima, cria da parceria do quase onipresente e onisciente Facebook com a agência de checagem Aos Fatos, pode bem suprir essa carência por vias transversas, já que a empresa de Mike Zuckerberg dá suporte a ambas.

Como, pelo que os próprios criadores dos projetos deixam a entender, apenas os posts das redes sociais são as criadoras e disseminadoras de notícias falsas, segue-se que as notícias publicadas por qualquer um dos veículos componentes das duas iniciativas – Comprova e “Fato ou Fake” – não serão checadas. Parte-se do pressuposto que esses veículos, ligados a grupos hegemônicos de comunicação do país, sempre dizem a verdade e/ou trabalham com fatos. Não estão e nunca estarão sob suspeita, ao contrário de qualquer outro que não faça parte desse restrito clube. Dessa forma, não há opção: será “fake news” o que os 24 veículos do Comprova e os oito do Grupo Globo disserem que é. E fim de papo.