
A gente tem que admitir: Jair Messias Bolsonaro sabe com que país está lidando. Juntou no seu balaio milicianos, neopentecostais, banqueiros, militares, agronegócio, Centrão, “mídia profissional”, odiadores de mulheres e gays, racistas e tudo o que de ruim o Brasil produz em quantidades industriais há 500 anos. Para manter essa monstruosidade em pé, usa como argamassa as ideias mais estúpidas que os americanos conseguem bolar e as passa por meios dos filhos, com o objetivo disfarçar o assalto ao país e a destruição de qualquer possibilidade de que possa se reerguer no futuro. É sob esse prisma que se deve enxergar a tal “guerra da vacina”.
O objetivo real de Bolsonaro ao declarar essa guerrinha de fancaria nada tem a ver se vacina funciona ou não, se é chinesa, russa, inglesa ou tanzaniana, ou mesmo se deve ser obrigatória. O que está por trás não tem a ver com a saúde dos brasileiros, mas com a tecnologia que promete revolucionar a maneira como nos relacionamos com a internet e o que vem depois dela, daqui a uma dúzia de anos – a 5G .
Para facilitar a minha escrita e a sua leitura, dividirei o texto nos três grandes jogadores deste game que une economia, tecnologia, ideologia e geopolítica. Haverá uma catadupa de links que aconselho você ler, a fim de ter maior entendimento do contexto, seja clicando no momento em que aparecerem, seja depois de chegar ao fim do texto.
Mas antes, vamos ver o que é a tal tecnologia 5G. Uma abordagem mais simples, você pode acessar aqui e uma mais técnica – mas que evita, malandramente, quase todas as menções à China – está aqui. É importante ler nem que seja a primeira para entender o que está na mesa.
Agora, ao jogo.
EUA
Estão numa sinuca. Por um erro estratégico quase absurdo – e que diz muito da decadência do país -, os EUA simplesmente ficaram a comer poeira no desenvolvimento da 5G. Por isso, nenhuma das seis maiores fabricantes de equipamentos para a tecnologia é estadunidense – são elas: Ericsson (Suécia), Nokia (Finlândia), Samsung (Coréia do Sul), Huawei e ZTE (China) e Viettel (Vietnã). O desespero é tão grande que o governo Trump chegou a pensar em dar dinheiro do contribuinte americano para que Nokia e Ericsson conseguissem fazer frente aos chineses. Porém, como seria de se esperar, o Congresso não aceitou fazer as coisas assim, na cara dura, e então foi necessário um contorcionismo.
O Brasil (e a América do Sul no geral) são o primeiro teste desta torção. Na visita do conselheiro de segurança nacional, Robert O´Brien, ao Brasil, os EUA, além de jogar no ar as acusações de praxe contra a China, prometeram mundos e fundos em termos de acordos comerciais, incluindo promessas de ajuda na compra de equipamentos para a substituição dos equipamentos de infraestrutura de telecomunicações chineses por “parceiros confiáveis” . Como esses parceiros não são norte-americanos, só sobram as empresas nórdicas citadas acima. Assim, seria feita uma operação triangular: os americanos emprestam para o Brasil, o Brasil compra os equipamentos de suecos e finlandeses e estes mudam suas fábricas da China para o Vietnã, que, por essas maravilhosas ironias da História, agora é confiável para os americanos.
Mas não apenas nós, cucarachas, que somos pressionados pelo Império. Até os europeus sentem a ponta da baioneta dos EUA nas costelas – no caso, a metáfora tem muito a ver. Chutar os traseiros do Reino Unido, virtual colônia americana na Europa (sim, outra ironia da História), não foi muito problema, mas a pressão parece que funcionou até sobre a poderosa Alemanha e sua dura primeira-ministra, Angela Merkel.
China
Está pondo a barbicha confuciana de molho. O noticiário faz entender que os chineses apenas agora, na 5G, se tornaram líderes em telefonia celular. Nada mais longe da verdade. Algo entre 40% e 50% de todo o equipamento que forma a infra do setor (postes, antenas, decodificadores, conectores, o escambau) é de origem chinesa desde os tempos do 2G, há uns 25 anos. A diferença é que, agora, o jogo se tornou mais pesado, com cacife altíssimo – o motivo você deve ter lido lá em cima (leu, certo?).
Graças a esse domínio – e ao sono pesado dos estrategistas dos EUA –, a China tomou uma vantagem imensa no desenvolvimento da 5G, mas estar à frente é apenas uma das pedras neste jogo, a outra é ter mercado. Nesse caso, a China também conta com vantagem, pois só seu mercado interno é capaz de alavancar uma tecnologia – afinal, são mais de 1 bilhão de seres humanos com capacidade de comprar.
Mas se dá pra golear por que se contentar com 1 a 0? Por isso, a China quer expandir o uso dos equipamentos de 5G para o maior número de mercados possível, garantindo que eles fiquem dependentes e prontos para a 6G no fim da década. E aí a porca torceu o rabo. Despertados de seu sono estratégico, os EUA, vendo o incêndio perto, decidiram impedir o avanço.
Não podendo mais recuperar o tempo perdido a ponto de concorrer de igual para igual, trataram de atrapalhar os inimigos lançando suspeitas de que os equipamentos chineses seriam usados para espionagem. Provas? Nenhuma até agora. Há estudos – quase todos de origem ou financiados por agências militares ou de segurança americanas ou europeias -, mas prova mesmo, mostrando onde estão, ou como seriam construídos, os tais “backdoors” a serem usados para espionagem, nada. A não ser, é claro, que os americanos considerem prova o fato de eles mesmos fazerem isso, como revelou Edward Snowden.
De qualquer maneira, as acusações já fizeram aliados tradicionais da Europa, que dependem econômica e militarmente dos EUA, pularem ou estarem prestes a pular fora. Até a Índia, que nada tinha contra os chineses, mudou de ideia depois de escaramuças de fronteira e resolveu desenvolver seu próprio sistema.
Brasil
Como sempre acontece, aqui as coisas são mais complicadas, pois há dois interesses em jogo: o da quadrilha familiar comandada por Jair Bolsonaro e do país. Vamos começar pelo primeiro.
Bolsonaro: A derrota de seu crush Donald Trump para Joe Biden fará com que o miliciano presidente se veja ainda mais pressionado do que antes, pois agora, fora os tiranetes da Hungria e do Cazaquistão, não tem mais aliados internacionais. Assim, ficaria barato para Biden dar uma barretada à esquerda do Partido Democrata e pressionar duramente Bolsonaro sobre a devastação patrocinada por seu governo na Amazônia e no Pantanal, o que, claro, seria sinal para os europeus redobrarem seus próprios ataques.
Nessa situação, a única arma real que o chefe da quadrilha do Planalto possui é a 5G. Biden não tem condições de trocar a 5G pela Amazônia pelos motivos que você já leu nos links (leu, né?). Arma que se torna ainda mais crucial dado os problemas de seus filhos com a Polícia. Bolsonaro sabe que, uma vez fora da Presidência, nada no mundo impedirá que pelo menos um dos seus meninos vá parar atrás das grades, embora essa ameaça seja bem pequena no que lhe diz respeito pessoalmente. Dessa forma, na mesa de negociação com os americanos estará certamente ajuda – ou pelo menos neutralidade – em 2022 e, caso tudo dê errado, que a família miliciana obtenha o que foi negado aos bolivianos golpistas – um tranquilo exílio na Flórida.
País: Nessa barganha, nós temos uma probabilidade altíssima de nos ferrarmos. É que, no momento, as duas possibilidades maiores são ruins para nós. A primeira é que os americanos aceitem o negócio de imediato, o que fará com que as telefônicas brasileiras tenham que trocar todos os seus equipamentos de fabricação chinesa por suecos ou finlandeses, o que demandará tempo enorme , custará uma grana imensa (que nós pagaremos, via conta) e, muito provavelmente, serviço pior.
A segunda possibilidade é que os EUA hesitem na negociação das salvaguardas à família miliciana e Bolsonaro, para forçar, atrase ainda mais a decisão, marcada para 2021, mas que devia ter sido tomada no início desse ano de banir ou não a tecnologia chinesa das licitações da Aneel. Nos dois casos, ficaremos muito atrás na corrida para adotar uma tecnologia fundamental para a competitividade da economia, o que só aconteceria na segunda metade dos anos 20.
Aqui, como você já deve ter adivinhado, é que entra a tal “guerra da vacina”. Bolsonaro usa a vacina para jogar a ideia de que qualquer coisa que venha da China não é confiável e, assim, preparar o distinto público para escolher uma tecnologia pior e mais cara, que prejudicará o país por muitas décadas, mas, dependendo das negociações, lhe garantirá e aos filhos agradáveis passeios de fim de tarde em Palm Beach. E, pelo que parece, a estratégia tem tudo para dar certo.